A “Beatriz” (nome fictício) escreveu-me uma mensagem pelo Instagram, num tom entre o cansaço e o alívio:
“Depois de ser mãe, deixei de me reconhecer. O meu corpo é o mesmo, mas já não o sinto como meu.”
Foi o início de uma conversa sobre uma ferida que muitas as mulheres escondem: a de olhar-se ao espelho e não se encontrar.
O Espelho
A Beatriz tem 37 anos e uma filha de cinco. “Antes, o meu corpo era o meu lugar. Sabia o que me apetecia, como me vestir, como me tocar. Sempre gostei do meu corpo, mesmo com defeitos. Era meu, percebes? Respondia-me, desejava, sentia. Depois da gravidez, parece que deixou de me pertencer. É como se agora fosse um corpo ao serviço dos outros: da filha, da rotina, da vida.”
Não é só o espelho que a incomoda. É o silêncio do desejo.
“Durante meses, nem pensei em sexo. Nem em mim. O meu corpo era uma ferramenta: para amamentar, para correr atrás dela, para sobreviver. E quando tentei voltar a sentir-me mulher, já não sabia como. O corpo não me reconheceu. Era como se tivesse desaprendido a habitar-me, como tentar dançar com um corpo que já não obedece.”
A Voz Cruel Que Só Eu Ouço
Pergunto-lhe se sente culpa.
Ela envia-me um emoji a rir, mas senti que aquele sorriso era um sorriso amargo de quem sabe que a resposta é “sim”.
“Claro que sinto. Vivemos rodeadas de imagens de mulheres que recuperam o corpo num mês, que voltam a ser ‘elas próprias’ num instante. Dizem-nos que o corpo volta, que basta força de vontade. Mas o meu não voltou. O meu corpo ficou mais largo, mais mole, mais cansado. E eu fiquei mais cruel comigo.”
A autocrítica tornou-se uma segunda pele.
“Olho-me e penso: não é só o corpo que mudou. É a mulher que nele habitava que desapareceu. Antes sabia quem era. Agora sou uma mãe com um corpo que não reconheço, e com saudades de uma versão de mim que já não existe. Passei a medir-me por fotografias antigas. A comparar-me com mulheres que pareciam não ter passado pelo mesmo. Cada vez que me olhava, via falhas. E as falhas, quando se repetem, transformam-se em identidade.”
Quando a Mãe Engole a Mulher
A Beatriz fala com uma honestidade brutal.
“Há dias em que sinto que o amor pela minha filha e a perda de mim andam de mãos dadas. Que para ser boa mãe tive de deixar de ser mulher. É horrível dizer isto, mas é o que sinto. E isso não é dito em lado nenhum, mas é vivido, pelo menos por mim.”
Conta que o marido é compreensivo, mas que ela própria se afastou.
“Ele elogia-me, diz que estou bonita, mas eu já não sei acreditar. Não porque duvide dele, mas porque já não sei ver-me assim. Porque já não me sinto dentro do corpo que ele vê. E isso mata qualquer tentativa de desejo. Porque o desejo, antes de ser com alguém, começa em nós."
Reaprender a Ser Casa
Há um silêncio bonito depois disto. Um silêncio que soa a promessa.
“A verdade é que percebi que passo a vida a pedir desculpa ao meu corpo. Por estar diferente. Por não ser o que era. Por não corresponder. E decidi prometer a mim própria tentar parar. Talvez não precise de voltar a ter o corpo de antes, preciso, sim, de aprender a gostar do corpo que tenho agora. Quero que volte a ser meu, mesmo com cicatrizes, com estrias, com cansaço. Quero olhar-me e reconhecer-me outra vez.”
Desde então, a Beatriz tem tentado reaprender-se. Devagar. Não por fora, mas por dentro.
De manhã, deixou de se vestir às pressas. Escolhe a roupa devagar, com música. Às vezes põe batom só porque sim. À tarde, caminha sem fones, ouve os passos, ouve o corpo. À noite, troca o scroll por um banho quente e demorado. “São gestos pequenos, mas sinto que são meus. E quando o corpo começa a ser nosso nas coisas pequenas, talvez um dia volte a ser por inteiro.”
Com o marido, o caminho também se faz devagar.
“Falei-lhe de tudo. Do que sinto, do que temo, do que não sei. Foi difícil, mas libertador. Agora já não precisamos fingir que está tudo igual. Rimo-nos mais. Tocamo-nos mais. Às vezes só nos deitamos juntos, em silêncio e isso também é amor.”
A Beatriz sorri, e sinto-lhe uma nova energia.
“Não sei se isto vai resultar, mas estou a tentar. E pela primeira vez em muito tempo, sinto que estou a voltar a casa e essa casa sou eu. Prometo voltar para te contar como correu."
O Corpo Que Aprende a Ficar
Esta é a história da Beatriz.
Mas podia ser a de tantas mulheres que, depois da maternidade, se olharam ao espelho e não se reconheceram.
Mulheres que continuam a dar tudo, o corpo, o tempo, o amor e um dia percebem que se perderam no processo.
O corpo muda e isso não é falha, é consequência. É o corpo que carregou, alimentou, protegeu. Que sobreviveu a noites sem sono, a medos, a culpas. E sim, ele muda. Mas talvez a mudança não seja o inimigo, talvez seja o convite.
O convite para reaprenderes a gostar de ti. Para pedires ajuda sem vergonha. Para falares com o teu companheiro, com amigas, com um terapeuta. Para voltares ao movimento, à pele, ao prazer, ao toque... mesmo que devagar. Para perceberes que o corpo não precisa de ser igual ao de antes para voltar a ser casa.
Se te revês na história da Beatriz, lembra-te disto: não há pressa em voltar. Há caminho. E esse caminho começa quando deixas de te exigir ser a mulher que foste e começas a dar espaço à mulher que és agora.
Porque o corpo depois da maternidade não é o fim de nada. É o início de outra forma de existir, uma forma mais bruta, mais humana, mais verdadeira.
Talvez o segredo não seja voltar a ser quem fomos, mas começar, com coragem e ternura, a amar quem somos agora.